Roberta Holanda Maschietto*
No final do ano passado dois colegas (Marcos Alan Ferreira e Paulo Kuhlmann) e eu finalmente lançamos um livro que esteve na gaveta desde 2016 e que contou com a contribuição de vários acadêmicos do Brasil, de Portugal, Moçambique e Estados Unidos. O livro Estudos para a Paz. Conceitos e Debates surgiu a partir da nossa vontade de contribuir para a consolidação do campo dos Estudos para a Paz (EPP) no Brasil, em especial ao trazer material em português sobre alguns temas centrais desta ampla agenda transdisciplinar.
Nos próximos parágrafos eu reflito sobre este árduo processo de publicação considerando o que observei como obstáculos estruturais que refletem, de um lado, o mercado de publicação brasileiro e, de outro, a dificuldade de um campo transdisciplinar e fundamentalmente crítico e normativo em se estabelecer academicamente num contexto ainda dominado pela ênfase na divisão disciplinar e caracterizado pelo predomínio de epistemologias eminentemente positivistas e elite-cêntricas. Este é o caso, em especial, das Relações Internacionais, campo disciplinar frequentemente associado aos EPP (e em relação ao qual os EPP são frequentemente alocados como ‘subcampo’).
Primeira tentativa
A ideia de investir neste livro surgiu ainda em 2015, quando desenhamos uma proposta, convidamos os autores e enviamos o projeto para possíveis editoras. Até então, minha experiência de publicação havia sido muito positiva. Tinha acabado de fechar um contrato com a editora Palgrave Macmillan para publicar o resultado da minha tese de doutorado. Havia seguido as diretrizes no site da editora, elaborado uma proposta detalhada e obtido dois pareceres a partir de alguns capítulos enviados. O processo havia sido rápido e transparente. Assim, parti do pressuposto que o processo para publicar um livro no Brasil seria semelhante.
Nosso primeiro contato foi com uma editora de grande porte, estrangeira, mas que tem uma divisão no Brasil. Utilizamos o e-mail disponível no site e antes de enviar a proposta pedimos maiores informações sobre diretrizes (cujos detalhes não constavam no site) e mencionamos o tema do livro. Cabe destacar que o e-mail indicava a filiação acadêmica dos autores, o que contribuiu para a nossa surpresa quando recebemos a primeira resposta:
Agradecemos seu contato e interesse em nossas publicações.
Conforme solicitação, informo que, de acordo com departamento responsável, a Editora não publica esse tipo de editorial, e sim publicações acadêmicas.
Para mais informações, continuamos à disposição.
Perplexos com o a resposta (que editorial? Será que não leram o e-mail ou não estava claro que queremos publicar um livro acadêmico?), escrevemos um e-mail esclarecendo qualquer ponto ambíguo, destacando o público alvo do livro (estudantes de graduação e pós-graduação), a existência da área no mundo e carência (e a demanda) no Brasil, nosso background acadêmico, dentre outras informações fundamentais. Pouco depois nos responderam informando que nossa “solicitação” havia sido enviada para o departamento responsável (qual departamento? Por que não havia e-mail de editores de áreas? Como falar com alguém diretamente responsável pelo setor?). Em resumo, nunca tivemos sequer uma resposta após esta breve e desastrosa tentativa de comunicação.
Apostando no que já havia dado certo
Um de nós havia publicado um livro com outra editora, menor, brasileira, e havia tido uma boa experiência, então pensamos que talvez ‘apostar no que já deu certo’ seria uma opção mais acertada desta vez. Assim, enviamos diretamente a proposta por e-mail, desta vez no âmbito de uma coleção de Relações Internacionais, onde achamos que haveria espaço para a obra. Após a resposta inicial positiva, enviamos o livro completo, que seguiria para os pareceristas. Então aguardamos… aguardamos… pedimos feedback… aguardamos mais… e após alguns meses começamos a pressionar para ter algum retorno.
Após meses sem ter recebido nem sequer um parecer, nos enviaram o livro ‘diagramado’, o que incluía um erro no próprio título da obra. Achamos tudo muito estranho e resolvemos pesquisar na internet outras experiências com esta editora. Descobrimos que a partir de uma certa data a lista de reclamações sobre o serviço desta editora só aumentava, incluindo problemas de comunicação até questões relativas à distribuição, dentre outras. Após reflexão, e mesmo desanimados com o fato que já havia se passado quase um ano desde esta tentativa de publicação, resolvemos retirar a nossa proposta e tentar uma nova editora. Pouco depois, esta editora decretou falência.
A fase otimista e a desilusão

Em vista do que havia ocorrido, desta vez optamos por uma editora reputada como extremamente séria, universitária, com títulos muito importantes em várias áreas do saber no Brasil. A expectativa era de, pelo menos, passar por um processo de avaliação sério, ter nosso trabalho lido e considerado de forma transparente, inclusive crítica. Assim, enviamos o livro e aguardamos o parecer.
Meses depois, novamente após alguma cobrança, recebemos um parecer. O livro, que continha cerca de 600 páginas distribuídas em 16 capítulos, foi avaliado em meia página, em sete pontos, dos quais dois se referiam à falta de pessoas do grupo de estudos “X”[1] entre os autores. Sobre os demais, vale reproduzir sinteticamente pois é curioso ver o que aparentemente conta para que um livro seja publicado (para além da presença de autores do grupo “X”):
- “Os autores desconhecem as regras de editoração, pois usam termos inadequados. Por exemplo: índice, no lugar de sumário”. E eu me perguntei: não é para isso que existe um grupo de editoração ou a simples disponibilização de diretrizes (que nunca nos foram enviadas, aliás)?
- “Não há padrão no uso da linguagem, com textos mais formais e outros com linguagem muito coloquial”. E eu pensei: não é isto algo perfeitamente passível de revisão?
- “Sobre a estrutura formal, o texto não tem um padrão sequer para a apresentação dos autores. Vai dar muito trabalho fazer o copy desk”. Eu, perplexa: hã???!!!
Os últimos dois pontos do parecer foram os únicos que minimamente se dignaram a mencionar qualquer coisa ligada ao conteúdo da obra. Um referia-se ao fato que parecia um projeto desarticulado (que parecia “a reunião de artigos que não foram aceitos para publicação em revista”, o que absolutamente não era o caso) e, por último, a grande pérola:
Os textos são titubeantes, como o primeiro (que comete ainda o engano formal de chamar de capítulo 1 e intitular introdução) que se propõe a definir o que são Estudos para a Paz e recortar o campo de estudos. No primeiro caso, tudo que pode resultar em violência, é tomado como objeto de tais estudos; no segundo, indica como sendo próprio dos cursos de Relações Internacionais seu estudo…
Sem entrar no mérito da questão ‘muito relevante’ da introdução aparecer como ‘capítulo 1’ (algo que traria imenso transtorno na revisão!), qualquer pessoa familiarizada como os EPP está a par das críticas ligadas à amplitude do conceito de violência e as diversas respostas a isto — faz parte do debate. Criticar sem demonstrar conhecimento do debate e sem aprofundar minimamente a crítica revela falta de humildade e de abertura para considerar discussões que não estejam alinhados com aquilo que já é conhecido e confortável. Este tipo de postura reforça um status quo epistemológico que enrijece o campo disciplinar e muitas vezes resulta na contínua proliferação de formas de pensar obsoletas e pouco úteis para o desenvolvimento da humanidade.
Desistir jamais

Não pense o leitor que este texto é um desabafo de quem não consegue lidar com a rejeição. Entendo que qualquer acadêmico sério que publique em periódicos acadêmicos competitivos tenha tido (e muitas vezes ainda tem, como observei pessoalmente, mesmo no caso de acadêmicos sêniores estabelecidos em suas carreiras e com inúmeras publicações amplamente citadas) rejeições. Isto faz parte do que é fundamental aqui: o processo de revisão de pares (pares no plural!). Afinal, é isto que diferencia a ciência de outras áreas do conhecimento.
O que é triste nesta história é a forma como este processo foi conduzido. No primeiro caso, a natureza do tema sequer mereceu a consideração de uma resposta. Talvez a ideia de ‘paz’ tenha parecido tema de panfleto para não merecer atenção, o que por si só já é triste e me faz pensar se a reação teria sido a mesma caso o título da proposta fosse “Estudos de Guerra”. No segundo caso, revelou-se o contexto de crise da editora que resultou em falta de parecer e um processo caótico que poderia afetar sensivelmente a qualidade da publicação e sua recepção.
No último caso, a resposta refletiu um claro posicionamento de desdém ao trabalho de inúmeros autores que, aliás, incluem professores e acadêmicos de instituições federais e estaduais, bem como pesquisadores com amplas publicações em suas áreas, inclusive em âmbito internacional. Uma simples forma de rejeitar a proposta seria dizer que não se encaixava na linha editorial devido ao tipo de abordagem — algo que poderia ser questionado, mas que seria uma prerrogativa da editora. Entretanto, uma editora de uma universidade que funciona com recursos públicos utilizar como argumento para rejeição de uma proposta a ausência de autores que pertençam a um determinado grupo de estudos é a negação da democratização do conhecimento. Além disso, argumentos ligados a processos de ‘copy desk’ e formatação não constituem elementos suficientes para se recusar uma proposta. Afinal, boa parte do trabalho de uma editora inclui a revisão destes elementos.
No meu entendimento, considerando a falta de profundidade do parecer em questão, no mínimo um segundo parecer seria necessário antes de se rejeitar a proposta. Aliás, neste caso específico, a informação que nos foi passada é que havia várias instâncias de aprovação da proposta, no entanto o envio de um parecer de uma meia página parece contradizer que este processo tenha ocorrido desta forma.
Vale destacar que grandes editoras internacionais (e inclusive vários periódicos acadêmicos) possuem diretrizes muito claras que são repassadas para os pareceristas de forma que critérios específicos sejam apreciados. Em alguns casos, e uso aqui a minha experiência, o parecerista deve preencher um formulário que contém tópicos de avaliação bem específicos, como ‘qual a contribuição da obra para a literatura sobre o tema?’, ‘com que obras ela compete/ o que traz de novo?’, ‘qual o mercado da obra?’, dentre vários outros. Nada disso foi sequer aventado neste único parecer.
Embora desgastantes, estes eventos estariam longe de nos fazer desistir da publicação, não apenas devido ao trabalho já investido dos autores na elaboração dos textos (e que, aliás, tiveram enorme paciência e nos apoiaram do início ao fim deste processo), mas especialmente porque sabemos que a demanda por uma perspectiva mais ampla e críticas dos Estudos para a Paz está presente no Brasil (observa-se, por exemplo, um crescente número de dissertações ligadas à área, aliada, ainda, à escassa produção acadêmica sobre o tema em língua portuguesa).
Tendo acompanhado este processo, uma colega querida e entusiasta da obra (Érica Winand) nos sugeriu tentarmos a Editora da Universidade Federal do Sergipe (UFS), a única que aqui menciono por nome, uma vez que foi a que afinal publicou nosso livro. E assim, finalmente, após mais de três anos, conseguimos o que buscávamos: um processo sistemático e transparente de avaliação e revisão, com prova de leitura cuidadosa da obra (cujo manuscrito nos foi enviado impresso com comentários do início ao fim) e atualizações regulares sobre o processo, além de um excelente trabalho de diagramação.
Conclusão
J. K. Rowling, autora da série Harry Potter, teve seu primeiro manuscrito rejeitado nada mais do que doze vezes por diferentes editoras. Todos sabem o final da história: sete livros sobre a saga que viraram best sellers e filmes de cinema.
Um trabalho acadêmico não é um livro de literatura e, em teoria, o processo de aceite ou rejeição de uma publicação deve ser pautado em critérios claros ligados à contribuição, solidez do argumento e rigor metodológico, ainda que as opiniões expressas sejam diferentes das opiniões mainstream no respectivo campo de conhecimento. Na prática, no entanto, sabemos que estes processos não estão imunes a aspectos subjetivos e disputas disciplinares e epistemológicas. Isto parece particularmente crítico quando se trata de consolidar um campo de estudos que é essencialmente transdisciplinar e que, portanto, não cabe confortavelmente em nenhuma área já estabelecida academicamente. Soma-se a isto a agenda explicitamente normativa dos Estudos para a Paz, que deixamos transparente nas primeiras páginas do livro. Ao reforçarmos esta dimensão normativa estamos sim rechaçando a velha agenda de ‘neutralidade’ da ciência. A ciência tem um papel ativo e molda comportamentos, para o bem ou para o mal. Nas Relações Internacionais, velhos paradigmas pautados em lógicas que ganharam popularidade na Guerra Fria estão longe de ser neutros: eles legitimam e reforçam lógicas de guerra, corrida armamentista, disputas de poder e conflito, dentre outros padrões sociais.
Qualquer campo do conhecimento, seja ele da área de humanas ou das ciências naturais, apenas evolui quando suas lógicas são questionadas. Em tempos polarizados como o que vivemos, mais do que nunca é fundamental persistir na ampliação de epistemologias alternativas que reforcem o questionamento dos valores que permeiam as relações sociais, os moldes da economia e o sistema político e social dominante no mundo. Haverá esforços (alguns mais óbvios, outros menos) de se conter movimentos contestatórios e antissistêmicos, mas é justamente nesse momento em que não podemos nos calar. Não buscamos concordância: a possibilidade de crescimento só pode advir do diálogo e aceitação de posições distintas, contanto que haja respeito pelo próximo. De outra forma, continuaremos a viver num contexto de ditadura intelectual e violência epistêmica (e testemunhar seus efeitos concretos e nefastos na vida das pessoas).
Com relação aos Estudos para a Paz, não tenho dúvidas que este campo está se espalhando no Brasil, a despeito de quem não goste e crie obstáculos para a sua expansão. Acredito que um dia teremos, assim como em outros lugares do mundo, inúmeros cursos de graduação e pós-graduação em EPP, reforçando a natureza transdisciplinar deste campo de estudos. Os percalços são muitos, criar novos espaços a partir da contestação de parâmetros engessados gera conflito e resistência. Da minha parte, considero isto um estímulo para continuar empurrando estas barreiras e criando espaço para novas formas de pensar.
[1] Suponho que o parecerista fosse membro do grupo, mas vou zelar pela anonimidade, pois não tenho nenhum conflito com o grupo, que, também suponho, não deve estar a par deste processo (e se estivesse, imagino que este procedimento seria tema de discordância interna).
* Pesquisadora de pós-doutorado do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Doutora em Estudos para a Paz pela Universidade de Bradford. Autora do livro Beyond Peacebuilding. The Challenges of Empowerment Promotion in Mozambique (Palgrave Macmillan, 2016).