Crônica de uma rebelião anunciada…e desejada!

Juarez Xavier*

Minneapolis se transformou no epicentro da rebelião negra mais significativa dos últimos 50 anos. Desde as memoráveis jornadas dos anos de 1960, que culminaram com a aprovação das leis dos direitos civis, adiadas por mais de cem anos, desde a abolição, em 1863. As ações reeditam, de forma atualizada e ampliada, os atos das décadas anteriores, com enfrentamento à violência policial, incêndios, carros destruídos, e um “mundo de gente” nas ruas das principais cidades, da Costa Leste à Oeste dos Estados Unidos.

Nesse novo levante, porém, um dado novo: a presença da juventude branca antirracista nas mobilizações, atuando como “cordão de proteção” para ativistas negras e negros, cobrando nas ruas a promessa do “sonho americano” de liberdade, igualdade e prosperidade, vendido pelo Estado. A vulnerabilidade das condições de vida da população negra afetou a sociedade.

A intelectualidade negra denuncia o aprofundamento do racismo, desde os anos de 1970. Na mesma época, todavia, Richard Nixon deflagrava a guerra às drogas, um problema secundário à época, e a população negra e latina foi sendo transformada em inimiga interna, para ser cercada, encarcerada e destruída.

Cornel West (professor e escritor), Michelle Alexander (advogada e escritora), bell hooks (professora, escritora e filósofa) e Angela Davis (professora, filósofa e intelectual), ativistas dos direitos civis, denunciam como essa “guerra” fortaleceu o supremacismo racial branco e o encarceramento em massa de homens negros, formando a maior população carcerária do planeta e impactando na violência policial militarizada e nos altos índices de morbidade de negras e negros.

A comunidade reagiu/veio reagindo a esses dispositivos de coerção e persuasão que destrói essa população em escala industrial. Mike Griffin, líder comunitário de Minneapolis desenhou em palavras a anatomia das condições sociais da comunidade na cidade: “Queremos justiça, mas isso também é uma questão de dignidade negra. Tivemos que lutar com unhas e dentes até pelos padrões mais básicos de vida. Se você é branco, esta é uma ótima cidade. Mas se você é negro, é uma luta diária.”[1]

A nova liderança negra sente, nesses últimos dias, o mesmo amargor na boca. O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), fundado por três jovens afro americanas (Alicia Garza, escritora; Patrisse Cullors, artista, e Opal Tometi, escritora), também ativistas dos direitos civis, tornou conhecidas globalmente as últimas palavras de Eric Garner (Nova York) e George Floyd (Minneapolis), antes de serem mortos por policiais brancos: “não consigo respirar” (“I can’t breathe”).

No Brasil, o cenário não é diferente há muito tempo. O relatório “Retrato da Desigualdades de Gênero e Raça”[2], de 2011 elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, ONU Mulheres,  Secretaria de Políticas para as Mulheres e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, expõe um quadro de profunda assimetria entre as condições de vida da população branca e as condições de vida da população negra, preta e parda, de acordo com os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística[3].

As diferenças evidenciam uma segregação “interseccional”, com marcadores de gênero, classe social e étnica/racial, que situa o homem branco no topo da pirâmide dos “privilégios”, e a mulheres negra, com as somas de todas as violências, na base da pirâmide dos “direitos”. São dois universos distintos, que mereceu do antropólogo congo-brasileiro Kabengele Munanga a observação de que, no Brasil, como prática de destruição de vidas, “o racismo é um crime perfeito”. Ele é cometido sem que haja nenhum tipo de punição.

Fotografia coalização negra por direitos
Reunião internacional da “Coalizão Negra por Direitos”, em novembro, na cidade de São Paulo, com a presença da liderança do movimento “Black Lives Matter” (EUA). Foto de autoria de Pedro Borges, Agência Alma Preta. 

Em relação à defesa da vida, a mesma situação registrada no Estados Unidos se reproduz no Brasil. O encarceramento em massa e a violência policial afetam, de modo singular, os direitos à vida de pretos e pardos. O Atlas da Violência de 2019[4], editado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, com base nos números do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde de 2017, mostra que houve no país 65.602 homicídios. Taxa equivalente a 31,6 mortes para cada cem mil habitantes. Sem paralelo entre países considerados em situação de paz/considerados pacíficos!

As vítimas são, em sua absoluta maioria, jovens, negros, pobres, mortos por arma de fogo. Ainda contamos com altos índices de violência contra a população LGBTI+ e, com indicadores muito acima dos registros internacionais, contra mulheres, com elevada taxa de feminicídio.

O patriarcado, a segregação classista e o supremacismo branco são os traços comuns que marcam a carne das sociedades norte americana e brasileira.

Essa ambiência tóxica dos últimos anos, fez da rebelião nos Estados Unidos uma crônica anunciada e inevitável, de desfecho ainda desconhecido.  Mas também é um levante desejado por muitas e muitos ativistas, que pode servir para sacudir o racismo estrutural e institucional que, tanto lá como cá, tem, na liderança do Executivo, figuras que encorajam, em palavras e atos, o racismo, a misoginia e a segregação social.

 

*Docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP Bauru), Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Departamento de Comunicação Social.

 

NOTAS

[1] Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/manifestantes-incendeiam-delegacia-em-3o-dia-de-protestos-contra-morte-de-negro-por-policial.shtml

[2] Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf

[3] Sobre esses critérios, ver: PETRUCCELLI, Jose Luis; SABOIA, Ana Lucia. Classificação etnico-raciais das populações: classificação e identidade. Estudos e Análises. Informação Demográfica e Socioeconomica n. 2. Ministerio do Planejamento, orçamento e gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv63405.pdf. Acesso em: 03/06/2020.

[4] https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019

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