Descolonizando corpos e mentes: os teatros do oprimido e para a paz*

Luan do Nascimento Silva**

Em defesa da arte e da estética,

em tempos de crise e de paz.

Arte não é adorno,

Palavra não é absoluta,

Som não é ruído,

e as Imagens falam.

(Augusto Boal)

O Teatro do Oprimido (TO) é uma metodologia teatral, desenvolvida e utilizada pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal como “arma” política para a transformação de conflitos. O TO começou a ser elaborado durante o regime militar[i] no Brasil e reúne um conjunto de técnicas que visam estimular os indivíduos em condição de vulnerabilidade a trabalharem as problemáticas que atravessam seu o contexto local, incentivando-os a reconhecer seu potencial de agência na transformação da realidade perante as estruturas de opressão.

“Árvore do Teatro do Oprimido” ou “Árvore Estética”, extraída de Boal (2008, p. 17) e adaptada conforme Boal (2009).

É por isso que se faz necessário compreender as contribuições do teatro em iniciativas de construção da paz por meios não violentos, verificando as proximidades e diferenças entre o TO e o TPP. Para tanto, debrucemo-nos sob os três níveis de análise para o teatro na construção da paz, estabelecido pela acadêmica e ativista cingalesa Nilanjana Premaratna em Theatre for Peacebuilding (2018). O primeiro nível diz respeito ao potencial do modelo teatral em contribuir com iniciativas, projetos e programas de construção da paz, levando em consideração suas dimensões política (empoderamento e desenvolvimento) e terapêutica (cura e reconciliação). Premaratna elenca alguns modelos teatrais que são desenvolvidos intencionalmente dentro dessas categorias, como o Psicodrama, Drama Terapia e o Teatro Playback na dimensão terapêutica; enquanto o Teatro Aplicado e o Teatro do Oprimido são os exemplos apresentados para a dimensão política. A autora sugere essa categoria para o TO não só por sua capacidade de investigar as raízes dos problemas locais e promover o engajamento coletivo, mas por essa ser sua perspectiva de origem: uma “arma” política dos oprimidos. Não obstante, anos após a sua sistematização e publicação, Boal reformula o TO para introduzir o Arco-Íris do Desejo (1996), uma perspectiva teatral terapêutica que aborda traumas e “opressões internas”[ii].

O segundo nível, por sua vez, volta-se para a utilização do teatro para preencher as lacunas dos discursos dominantes de construção da paz. Esse preenchimento pode ocorrer pela expansão dos parâmetros existentes ou pela criação de abordagens específicas para o contexto em que está sendo implementado. A expansão dos parâmetros é bem ampla e pode considerar a introdução de outras expressões artísticas (ampliando a capacidade de atingir públicos diferentes, sensíveis a diferentes artes), a inclusão de discursos alternativos e contra-hegemônicos (de grupos marginalizados na produção de narrativas sobre a realidade local), ou ainda pelo trabalho de aspectos emocionais do conflitos (comumente desconsiderados pelas abordagens convencionais). Já a criação de abordagens específicas (pautada pelos atores locais, de acordo com seus interesses e necessidades) se contrapõe aos modelos padrão e pretensamente transferíveis para qualquer realidade.

Para além da versatilidade que o próprio teatro oferece em termos artísticos-estéticos, o TO é uma metodologia intencionalmente desenvolvida para trabalhar com as narrativas dos oprimidos, dos grupos socialmente vulneráveis, considerados aqui não meros espectadores, mas sim agentes ativos da produção teatral (espect-atores), estabelecendo os conflitos centrais e as possibilidades de transformação. Trata-se, portanto, de uma estratégia de investigação sobre as raízes dos problemas locais, a partir das perspectivas dos oprimidos – que são estimulados a refletir e agir em seu próprio contexto sociocultural. O diálogo e a multivocalidade são características que corroboram com o potencial dessa metodologia em iniciativas de construção da paz, rearticulando as memórias entre os participantes e dando novos significados para a realidade local, pautando-se na diversidade e pluralidade de narrativas.

Essas características (diálogo e multivocalidade) estão conectadas ao terceiro nível de análise, referente ao modo de funcionamento do teatro na construção da paz, e podem ser observadas nas técnicas de Teatro do Oprimido. Destaquemos aqui a técnica de Teatro Fórum, amplamente utilizada ao redor do mundo como uma abordagem para a transformação de conflitos em comunidades violentas. Em síntese, essa técnica divide a performance em dois momentos; no primeiro realiza-se a cena, cujo tema seja pertinente ao contexto específico e que, portanto, represente uma de suas problemáticas, bem como soluções para ela, ou seja, a cena pode ser previamente produzida por meio de investigação do coringa (multiplicador do TO) ou, ainda, produzida pelos participantes durante as oficinas/cursos. No segundo momento, o coringa estimula os espect-atores a participar diretamente da cena, facilitando as discussões sobre a cena e as demais intervenções (reflexões e ações alternativas para o cenário proposto).

Para ilustrar esse debate teórico apresentaremos, brevemente, a performance para a paz do Teatro Experimental Fontibón (TEF), uma fundação cultural composta por artistas-ativistas da comunidade de Fontibón (Bogotá, Colômbia). O TEF se caracteriza como um coletivo que atua historicamente em Bogotá, orientados pela preocupação com a situação dos direitos humanos no país e pelo compromisso com a construção da cultura de paz. Justamente por adotar o Teatro Fórum, o TEF ampliou sua repercussão para outras localidades do país[iii], realizando oficinas de TO em diferentes comunidades e abordando problemáticas variadas, em particular aquelas que são desdobramentos do intenso conflito na Colômbia. Essa fundação cultural foi fundada em 1979, utilizando o teatro de rua como estratégia de combate a censura, ocupação dos espaços públicos e diálogo com a população local, e desde 2003, quando adotou o TO, já produziu mais de 26 peças de Teatro Fórum sobre questões identitárias, convivência comunitária, violências política, sexual e de gênero, entre outras problemáticas levantadas por suas investigações e pelo espect-atores que participam das suas oficinas.

“La parche y la olla” (2016), obra de Teatro Fórum sobre consumo e tráfico de drogas nas escolas. À direita, ator-ativista do TEF, acompanhado de estudantes espect-atoras. Fonte: Instituto Distrital de Las Artes (IDARTES) da Prefeitura de Bogotá.

Ao serem utilizadas os três níveis, propostos por Premaratna (2018), podemos apontar para algumas convergências entre o TEF e a literatura de TPP. Primeiramente, embora a dimensão terapêutica não seja marginalizada, tem-se que enfatizar que o grupo parte de uma orientação política no engajamento com o teatro. Essa orientação política foi forjada pelos seus membros em sua trajetória no setor cultural desde o final da década de 1970, preocupados em especial com o empoderamento comunitário e coletivo em alternativa às profundas divisões dentro da sociedade colombiana. Além de ser coerente com essa dimensão política, mobilizando os indivíduos para a realização de ações concretas, a adoção do TO como metodologia de trabalho também se conecta ao seu segundo nível de análise por explorar as problemáticas locais a partir das narrativas dos grupos socialmente vulneráveis – a variedade de temas supracitados reflete as percepções e necessidades de diferentes grupos oprimidos, de acordo com seus contextos.

Portanto, o TEF se apropria e adapta essa metodologia teatral para explorar as especificidades do contexto de origem, que possuem suas próprias dinâmicas de opressão. A estrutura do Teatro Fórum (ação dramática, interrupção no ponto chave e intervenção do público) auxilia o TEF na construção de uma abordagem dialógica e plural na rearticulação das narrativas do conflito. Trata-se, nesse sentido, do terceiro nível de análise do teatro na construção da paz, isto é, da dinâmica de operacionalização do teatro no âmbito dessa fundação cultural, que reconhece a pluralidade de narrativas e busca estabelecer o diálogo propositivo entre elas, estimulando a reflexão crítica acerca da realidade local e desenvolvendo arranjos colaborativos para a construção da cultura de paz, desde perspectivas de trabalho coletivo e engajado com a transformação social.

*Esse texto é resultado de dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB), sob orientação do Prof. Dr. Paulo R. L. Kuhlmann.

**Doutorando em Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio). Colaborador do Projeto Universidade em Ação (PUA/UEPB) e membro do Grupo de Estudos de Paz e Segurança Mundial (GEPASM). E-mail: luandonascimentosilva@gmail.com

NOTAS

[i] A obra Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas foi originalmente publicada em 1974.

[ii] Ao contrário de suas experiências com o TO na América Latina, cuja estrutura de opressão era(é) explícita (racismo, ditaduras, exploração dos trabalhadores, etc.), na Europa Boal se deparou com outras formas de violência, internalizadas nos sujeitos. Daí a expressão “tira na cabeça”, uma analogia com a violência policial para além do espaço físico/corpóreo.

[iii] O grupo também participa de eventos e festivais internacionais, mas é a sua performance com o teatro na construção da paz, em particular com o Teatro Fórum, que impulsiona sua repercussão como referência na transformação de conflitos por meio da arte. Como resultado, o TEF integrou arranjos colaborativos com outros atores públicos e privados, nacionais e internacionais, para ampliar seu alcance – tais como secretarias municipais, escolas, redes hospitalares, Ministério da Cultura, Ministério da Saúde e Proteção Social e organismos do Sistema ONU: UNICEF, ACNUR, UNFPA, entre outros.

Referências

Boal, Augusto (2009). Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond.

__________ (2008). Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas (8ª Ed.). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.

__________ (1996). O Arco-Íris do Desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Premaratna, N. (2018). Theatre for Peacebuilding: the role of arts in conflict transformation in South Asia. Cham: Palgrave Macmillan.

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