Nota: Este post sintetiza parte dos resultados apresentados na nota de pesquisa “As margens do estado na pandemia: experiências periféricas de (in) segurança humana no Brasil”, publicada em Sertanias: Revista de Ciências Humanas e Sociais, v. 1, n. 1, p. 03-28. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/sertanias/article/view/8272.
Em Agosto de 2020 o Brasil ultrapassava a marca de 100.000 mortos em consequência da enfermidade COVID-19 e possuía mais de 3,11 milhões de casos confirmados (COVID-19 DATA REPOSITORY, CSSE, 07/09/ 2020). Em termos relativos, considerando os dados demográficos e a curva de contágio nacional, o país se destacava como o caso mais grave em registros oficiais. Desde o início da pandemia, informações oficiais foram registradas de forma pouco sistemática ou uniforme no Brasil. Se no início os dados eram insuficientes, considerando a falta de testes e conhecimento sobre a nova enfermidade, posteriormente denúncias de deliberada dissimulação estratégica por parte do governo federal em manusear informações confiáveis e verossímeis sobre a disseminação da COVID-19 no país levou vários órgãos de imprensa à criação de um consórcio de veículos de comunicação em junho de 2020. Ainda assim, sem testes, dados ou acesso às comunidades mais economicamente vulneráveis, nas diversas regiões do país, o registro oficial invisibiliza a forma como estas comunidades periféricas vêm experimentando e reagindo à pandemia e às políticas estatais destinadas à gestão da crise sanitária que, por sua vez, utilizam esses mesmos registros oficiais como base para sua elaboração. Consecutivamente, as políticas públicas adotadas até então não consideraram as especificidades das periferias rurais e urbanas no Brasil e suas populações marginalizadas.
Foi este cenário que inspirou o presente projeto, cujo objetivo é visibilizar narrativas e experiências periféricas no contexto da pandemia de Covid-19. De fato, no Brasil, os efeitos da pandemia têm revelado as inúmeras frentes de insegurança de determinadas camadas da população, em especial dos mais pobres e de grupos socialmente marginalizados, como negros, indígenas, e mulheres, que tem sido mais afetados pelos efeitos da pandemia tanto em termos sanitários, como em termos econômicos.
Este post sintetiza parte dos resultados apresentados na nota de pesquisa “As margens do estado na pandemia: experiências periféricas de (in) segurança humana no Brasil”, publicada recentemente em Sertanias: Revista de Ciências Humanas e Sociais. Vamos focar nos resultados parciais da pesquisa, a partir de um questionário aplicado em colaboração com a Fundação Perseu Abramo, nomeadamente a equipe de pesquisa do projeto Reconexão Periferias. Os respondentes incluíram representantes de 80 organizações e coletivos sociais de natureza diversa cobrindo todos os estados brasileiros.
Quando questionados “como a pandemia da Covid-19 afetou o trabalho da sua organização?”, a grande maioria dos participantes destacou o impacto em termos de mudança de forma de trabalho, incluindo migração para plataforma online e redução de encontros. Em muitos casos, esta mudança afetou a relação com a população atendida, devido à assimetria digital, que ficou acentuada durante a pandemia. Mais de um terço dos entrevistados relataram, ainda, a precarização de atendimentos e aprofundamento das assimetrias sociais com a adoção das medidas sanitárias impostas pelo governo à toda a população nacional, sem considerar a especificidade e vulnerabilidade crescente daqueles que habitam as regiões periféricas. Segundo alguns dos entrevistados, nesse mesmo período, o número de pessoas que vivem nas ruas teria dobrado e muitos de seus atendidos (mesmo os funcionários) passavam fome. Outro elemento comum a muitas organizações foi o redirecionamento das atividades para ações de cunho assistencialista e emergencial, como a entrega de cestas básicas e kits de higiene. Ainda, algumas relataram forte impacto financeiro, levando à cessação completa de atividades em alguns casos (especialmente no caso de organizações que focam em atividades culturais).
Há que se destacar que também houve menção a impactos positivos, ligados à própria migração para plataformas online, o que, em muitos casos, possibilitou a organização atingir novos públicos, especialmente jovens. Ainda, no caso de uma organização que lida com moradores de rua e profissionais do sexo, observou-se o aumento da visibilidade do trabalho da organização e maior solidariedade. Estes aspectos, contudo, não compensaram os efeitos negativos, em especial no que concerne a sustentabilidade das atividades de muitas destas organizações. Ao contrário, observa-se os efeitos cumulativos e as limitações do modelo de desenvolvimento socioeconômico adotado por sucessivos gestores da economia nacional, especialmente no que concerne a extensão das assimetrias sociais no país e as limitações relativas à segurança humana de populações periféricas.
Em seguida, buscamos analisar o tipo de impacto que a pandemia teve nas populações atendidas por estas organizações e coletivos. As respostas apontaram para efeitos em quatro esferas distintas—social, econômica, cultural e política.
Dos que indicaram a esfera social como uma das esferas que sofreu maior impacto nas suas comunidades, 76,36% referem o impacto na saúde, que inclui o número de mortes, agravamento de doenças pré-existentes, falta de recursos (testes, medicamentos e profissionais), cancelamento na prestação de serviços de saúde não-relacionado com a pandemia, saúde mental e dificuldades acrescidas no acesso ao cuidados médicos, tendo o último sido o mais referido (38%). Também foi notável o impacto da pandemia na educação, em especial o agravamento nas desigualdades de acesso a outros níveis de ensino como o superior, perda do ano letivo ou abandono escolar, além da falta de recursos como acesso à internet e equipamentos. Ainda na esfera social, quase metade dos respondentes citaram aspectos relacionados com a (des)proteção social, tais como falta de acesso à água e itens de higiene, bem como aos equipamentos de proteção individual, habitações precárias, despejos e questões relacionadas à segurança alimentar, como acesso a bens de qualidade e mesmo fome, sendo o último o impacto mais citado neste quesito.
Os impactos econômicos foram citados por mais de 60% dos respondentes. Destaca-se aqui questões relacionadas ao trabalho, sendo o desemprego, o aumento da precariedade e a queda de rendimentos os impactos principais mencionados pelos entrevistados. Soma-se isto o aumento da desproteção social e a desigualdade de acesso a direitos básicos como seguro desemprego, auxílios por perda de rendimentos e até possibilidade de manter ou não o confinamento.
Por fim, os impactos cultural e político foram expressos, respectivamente, em termos de alterações nos modos de vida tradicionais, nas formas de convivência nas sociedades e na coesão social das comunidades, e na forma como a informação sobre a pandemia foi veiculada pelo governo, bem como no acesso às medidas de apoio como o auxílio emergencial.
No que diz respeito à atuação destas organizações para atender as necessidades imediatas geradas pelo contexto da pandemia COVID-19 na comunidade, muitas organizações adaptaram suas rotinas para poder atender demandas de cunho assistencial e emergencial durante a pandemia. Destacam-se particularmente as ações de distribuição de cestas básicas, distribuição e produtos de higiene e comunicação comunitária preventiva. O que se nota pelas respostas é que este foi um período de muito trabalho destas organizações, que envolveu processos de redirecionamento de atividades bem como ampla mobilização da comunidade, o que demonstra a presença de solidariedade e resiliência nestes espaços em que a segurança humana já é estruturalmente tão frágil.

Por fim, perguntamos aos participantes “Que tipo de ações do poder público têm beneficiado a sua organização e sua comunidade desde que a pandemia foi decretada?” Aqui quatro tipos de resposta foram identificadas. Para quase metade dos repsondentes, o Estado adotou medidas de combate e prevenção à pandemia, mas foram insuficientes. 16% afirmaram que o Estado não adotou medida nenhuma que beneficiasse as suas populações-alvo. Outros 16% reportaram que o Estado adotou medidas, mas estas não chegaram às comunidades destas lideranças ou não estavam adaptadas às especificidades destas comunidades. Apenas 5% afirmou que o Estado adotou medidas e que estas podem ser consideradas satisfatórias.
É interessante notar que o auxílio emergencial foi mencionado em 32% das respostas como uma ação importante e que beneficiou a comunidade durante o período. As cestas básicas foram citadas por 20% dos respondentes—contudo no caso das cestas básicas, alguns respondentes chegaram a afirmar que não eram provenientes do poder público, e sim de empresas privadas ou de entidades sociais que as organizavam com doações para poder distribuí-las.
Ainda, é importante ressaltar que dois respondentes explicaram que as medidas adotadas para beneficiar sua comunidade foram resultado de acionamento do poder público através de medida judicial. Isso significa que algumas comunidades dispõem de recursos humanos e capital social para este acionamento, tornando-as visíveis aos olhos do Estado. Mas pela quantidade de respondentes que citaram ter lançado mão deste recurso, a maior parte delas está à mercê da própria sorte, o que explica a enorme movimentação e quantidade de atividades empreendidas por estas pequenas organizações durante a pandemia.
A próxima etapa desta pesquisa inclui a coleta de testemunhos de líderes e membros de comunidades periféricas, com a finalidade de montar uma base de dados de acesso público. À medida que a pandemia avança e o cenário no Brasil continua grave, torna-se cada mais urgente trazer à tona o que se passa nas comunidades periféricas e pressionar o governo por ações mais eficientes. Esperamos, com esta pesquisa, contribuir um pouco para aumentar a representatividade de vozes muitas vezes marginalizadas na mídia e nas políticas públicas.
NOTAS
[1] Pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do Centro de Estudos em Conflito e Paz – CCP, NUPRI/USP. Contato: camila.braga@usp.br
[2] Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do Centro de Estudos em Conflito e Paz – CCP, NUPRI/USP, integrante da Rede de Pesquisa em Paz, Conflito e Estudos Críticos de Segurança (PCECS) e do Experts Group of the Global Initiative Against Transnational Organized Crime (GI-TOC). Orcid: 0000-0001-7358-7760. Contato: anamaura@gmail.com.
[3] Investigadora Integrada no Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra e pesquisadora do Centro de Estudos em Conflito e Paz – CCP, NUPRI/USP. Contato: joanaricarte@uc.pt
[4] Pesquisadora de pós-doutorado, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra e pesquisadora do Centro de Estudos em Conflito e Paz, NUPRI/USP. Contato: rhmaschietto@gmail.com