Convidamos a tod@s a participar desta roda de conversa, em evento online gratuito promovido em parceria pelo Laboratório Social e pela Rede PCECS. Para participar, basta se inscrever no site: laboratoriosocial.com.br
Data: quinta-feira, 05 de maio de 2022
Horário: 17:00-18:30
Em preparação ao evento, a autora compartilha algumas reflexões sobre o processo de pesquisa que levou a esta importante publicação.

Sobre como escrever um livro sobre desaparecimentos no Brasil contemporâneo
Quando iniciei meu trabalho de campo no Brasil, estava convencida de que algum passado não resolvido estava sendo encenado pelas forças de segurança e que o desaparecimento de Amarildo traria à tona essas memórias reprimidas. Os números que se seguiram ao caso de Amarildo mostraram que os casos de desaparecimentos estavam aumentando enquanto as mortes por policiais diminuíam.
Durante a pesquisa, foi interessante observar que o “desaparecimento” estava tão fortemente ligado à “ditadura” tornando quase impossível discuti-lo no contexto contemporâneo. Muitas vezes, o desaparecimento e assumido como morte. O vazio causado pela ausência de alguém é imediatamente preenchido com uma explicação. Quando a pessoa perdida é um morador de favela com uma origem racial específica, a explicação geral é “provavelmente foi morto pela polícia em algum lugar”. Se a pessoa desaparecida era do sexo feminino e não morador de favela, a explicação é que “provavelmente ela está se relacionando com algum barão da droga que mora na favela”. Os comentários geralmente terminam com “alguém encontrará o corpo em pouco tempo”. Se cheguei ao Brasil focando apenas em desaparecimentos, saí do país convencida de que este livro precisaria se envolver mais com o tema da morte.
A (des)politização das mortes causadas pela polícia em contraste com as mortes causadas durante a ditadura na América Latina é uma preocupação central deste livro. Além das noções racializadas e espacializadas, é importante destacar o que Gabriel Gatti definiu como epistemicídio – a morte da epistemologia que permitiria a investigação de desaparecimentos por forças estatais fora do quadro histórico das ditaduras. Pita (2010) discutiu uma despolitização semelhante dos assassinatos cometidos por policiais na Argentina. Um país onde a mobilização e a manifestação pública fazem parte de sua cultura e tradição, a morte causada pela polícia não é considerada política. Ela destacou que a politização da própria morte está atrelada ao sentido da vida. Se a vida foi dedicada à resistência política ou ao ativismo, sua morte é política. Em contraste, matar ou desaparecer com uma vida nua não é político.
Outro ponto importante é que um relato geral da violência policial no Brasil está associado à ditadura. Embora seja amplamente reconhecido que um regime militar fortalece o que pode ser chamado de militarização das relações sociais ao criar uma cultura de brutalidade entre as instituições de defesa do Estado e normalizar as medidas de aplicação da lei na vida cotidiana das populações, pouca atenção é dada à lógica racializada no aparelho estatal. Foi interessante observar também que, apesar do esforço do Grupo de Pesquisa da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro em reconhecer que a violência também foi perpetrada contra moradores de favelas, como no caso da parada e busca em veículos sem motivo aparente – as blitz, ou na fiscalização de associações de favelas e o deslocamento forçado nas áreas favelizadas, os moradores das favelas foram, no entanto, mantidos à margem da narrativa da luta política. O regime acreditava, ou fez acreditar, que os moradores das favelas eram de alguma forma incapazes de se organizar como um grupo de resistência, considerando que essas comunidades só poderiam correr o risco de serem cooptadas por grupos comunistas ou organizações internacionais que trabalhavam pela igualdade racial, uma narrativa que persistiu de forma mais geral inclusive nos grupos de resistência a ditadura.
O presente livro faz o movimento de se conectar a uma literatura que informa que algumas vidas são matáveis. Essa noção e decisão incorporadas pela polícia são endossadas e legitimadas pelo silêncio em torno da violência. Para Pita, que analisa casos contemporâneos de desaparecimento na Argentina, e que utilizou os fundamentos teóricos de Foucault e Agamben, há uma saída. Para ela, na condição de ser matável reside uma potencialidade de expor a necessidade de limitar o poder soberano nas mãos da polícia. Eu gostaria, porem, de ampliar um pouco mais esse debate. Como Mbembe (2003) apontou, a decisão soberana sobre a morte não é apenas decidir quem morre, mas também expor certas populações à morte e principalmente determinar como algumas populações morrerão.
Optei por um recorte temporal de trinta anos, ou seja, o período entre 1985 e 2015, que representa a redemocratização do Brasil. Nesse período, milícias e cartéis de drogas ganharam destaque no contexto urbano brasileiro, com o aumento da criminalidade, assassinatos e desaparecimentos causados por policiais que foram classificados como massacres e chacinas. No entanto, esse período não representa um estado de exceção formal, mas apresenta um corpo de excepcionalidades enquadrado como uma guerra contra as drogas. Nesta guerra, ninguém parece concordar com a estratégia de intervenção pontual nas periferias – como discutido no capítulo 3. Como resultado, a vida daqueles que estão mais próximos da zona de guerra – os moradores de áreas periféricas, são normalizados como potenciais alvos.
Pensar nos desaparecimentos e assassinatos policiais em termos racializados é importante por alguns motivos. Em primeiro lugar, ao analisar os números de desaparecimentos como homicídios cometidos por policiais em áreas urbanas do Brasil, as vítimas são, em sua grande maioria, de comunidades negras. No entanto, pelo fato de o Brasil se proclamar uma “democracia multirracial”, os aspectos raciais das relações sociais e, consequentemente, a violência institucional, ainda que discutidos, não são, muitas vezes, considerados problemáticos. Ao negligenciar a raça na análise da violência policial, a criminalização dos corpos negros é percebida não como um problema de raça, mas apenas como um problema de pobreza que levaria vidas jovens a se envolverem com atividades de cartéis de drogas. Se voltarmos à resposta da polícia e das autoridades quando um corpo “branco” desaparece ou é morto pela polícia, é mais difícil negar como a raça desempenha um papel crucial. Ao trazer as ideias de Agamben sobre como algumas vidas são consideradas indignas, bem como o trabalho de Mbembe sobre a centralidade da morte para a decisão soberana, espero discutir a centralidade da raça na lógica da decisão soberana.
Em segundo lugar, ao discutir a violência do Estado em termos raciais, este livro também está se envolvendo com uma questão mais ampla – a criminalização de corpos negros, que eu argumento, está profundamente enraizada nas sociedades pós-coloniais onde as relações sociais e econômicas eram baseadas no comércio de escravos. É importante destacar que as estruturas que tornam as comunidades racializadas mais vulneráveis precisam de uma alimentação constante, de forma que o aparato de segurança também se torna um dispositivo neoliberal que atua tendo como alvo a pobreza, a desigualdade e os sujeitos racializados. Nesse sentido, este livro também reflete minha tentativa de discutir como o aparato de segurança no Brasil também reflete uma lógica baseada em uma lógica que interconecta neoliberal e pós-colonial – que leva morte às comunidades periféricas e racializadas.
Sabrina Villenave
Manchester- 2022