Péricles Filgueiras de Athayde Filho
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Embora não seja um tema cuja pesquisa predomine nos Estudos para a Paz, a não-violência possui sua relevância teórica e prática para a solução de conflitos (JOHANSEN, 2007). Várias são as vantagens destes métodos em relação àqueles que empregam respostas violentas às agressões sofridas: a violência gerará resultados igualmente violentos, criando um círculo vicioso; as consequências de atos violentos são, na maioria das vezes, irreversíveis; a violência atinge tudo e todos, enquanto os métodos pacíficos são “cirúrgicos”, pois visam a atacar apenas alguns aspectos de daquelas pessoas ou instituições que causam as violências.
Nesse contexto, o filme A Force More Powerful, de 1999, dirigido e escrito por Steve York, exemplifica muito bem como se dá o surgimento e o uso dessas técnicas em vários casos verídicos, dentre as quais destacamos aquelas contidas na primeira parte da sua obra.
Na sua metade inicial, portanto, o filme nos dá conta de três histórias de lutas: a independência da Índia, o fim da segregação racial em Nashville, EUA, e a luta contra o apartheid na África do Sul. Uma luta, todavia, não implica em uso de violência, e é isso que fica bem claro ao final dos setenta e sete minutos de filme: “não violência significa lutar de volta”. Esta frase, ouvida mais de uma vez, resume bem a mensagem passada.
O vídeo apresenta, de forma muito elucidativa, todas as vantagens dos movimentos não violentos, mais especialmente que, através dos seus métodos, consegue-se quebrar um ciclo de violência estrutural e cultural, e gerar uma paz duradora (MULLEN, 2015). Ora, medidas violentas resultam em contramedidas igualmente violentas. Mas o que o agressor deve fazer quando o agredido não devolve o seu ataque? O que este pode fazer quando aquele, embora não aceite determinada conjuntura, não tenta revertê-la à força
Não por acaso a primeira história é a de um simples advogado chamado Moahandas Karamchand Gandhi: o homem que liderou o movimento denominado da Satyagraha (“agarre-se à verdade”, ou “atenha-se à verdade”, em tradução livre).
Incorporando conceitos religiosos[2] ao seu modo de vida, Gandhi adotou táticas de não violência para combater o império britânico: protestos não violentos, não cooperação e desobediência civil. Destaque-se, por exemplo a “marcha do sal”, na qual Gandhi conduziu milhares de indianos aos campos de sal cuja exploração econômica era feita exclusivamente pela Grã-Bretanha, ou mesmo a convocação para que o povo deixasse de comprar produtos vindos da metrópole, os quais causaram um grande impacto nesse sistema de governo que culminaram em várias prisões, inclusive do próprio Gandhi.
Tais prisões, vale destacar, eram almejadas pelo movimento, pois demonstrava como o governo britânico agia de forma ilegítima para controlar a crescente vontade popular pela independência.
Esse grande marco na história inspirou vários outros movimentos, tais como o ocorrido na década de 1960 em Nashville, quando um simples pastor negro chamado James Lawson, em uma pequena capela localizada nos fundos da Universidade de Fisk, liderou um pequeno grupo de estudantes em um bem sucedido movimento visando ao fim da segregação racial na cidade. Primeiramente, fizeram com uma ocupação pacífica de lanchonetes que separavam os assentos nos quais pessoas negras poderiam sentar e, mais adiante, boicotaram lojas do entro da cidade.
Manifestamente inspirado pelo que ocorreu na Índia décadas antes, o pastor Lawson sistematizou as técnicas de Gandhi e criou uma verdadeira escola de não violência: realizava treinamentos de insultos e várias agressões para que seus membros soubessem como se comportar; formavam várias frentes, para que quando um grupo fosse preso, outro tomasse seu lugar, até provar que não poderiam prender toda a comunidade negra; levavam telefones de ambulância e bolsos cheios de fichas de telefone para emergência; etc. O mesmo entendia, portanto, que para o movimento dar certo, era necessário agir com organização.
Nessas duas primeiras partes, portanto, podemos identificar uma sobreposição de tradições de não violência: o pacifismo e o pragmatismo (JOHANSEN, 2007). Ambos apontam que a fundamentação religiosa dos seus principais agentes e, especialmente, sua orientação de estilo de vida, levaram os mesmos a desenvolver, de forma sistemática, práticas de não violência visando a alcançar determinado objetivo.
No último filme, um jovem de apenas dezessete anos chamado Mkhuseli Jack, junto com outros líderes comunitários, entenderam que o confronto direto com a polícia seria uma batalha longa, sangrenta e inevitavelmente fadada ao fracasso. Por outro lado, novamente citando o nome de Gandhi, implementaram um longo boicote às lojas de todo o país que chamaram a atenção do governo. Mais uma vez, o Estado só conseguia responder com prisões, mas estas eram comemoradas e até mesmo faziam o movimento crescer ainda mais.
Tal situação levou o problema ao conhecimento de organizações internacionais e até mesmo grandes companhias que, por fim, criaram embargos e começaram a retirar seus negócios da África do Sul, respectivamente, em apoio ao movimento contra o apartheid.
Em todos os casos, duas características também foram importantes para o sucesso dos movimentos: primeiro, o papel da imprensa e, em seguida, o alvo econômico dos protestos. Sem a primeira, nenhum dos movimentos ganharia força e repercussão suficiente para revelar as barbaridades cometidas pelo Estado e angariar novos membros. A segunda, por sua vez, mostra que o aspecto econômico conta muito: em todos os casos, houve algum tipo de boicote (especialmente no último caso), criando forte constrangimento nos Estados, levando-os, finalmente, a conversar com os líderes dos respectivos movimentos.
Referências:
JOHANSEN, Jorgen. “Nonviolence: More than the absence of violence”. In: WEBEL, Charles & GALTUNG, Johan (ed). Handbook of Peace and Conflict Studies. Londres: Routledge, 2007.
MULLEN, Mathew. “Reassessing the focus of transitional justice: the need to move structural and cultural violence to the centre”, Cambridge Review of International Affairs, 28:3, 462-479, 2015.
[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (PPGCPRI – UFPB).
[2] O ahimsa, extraído do Bhagavad Gita, normalmente traduzido como “não violência” ou “não causar dano”, foi interpretado de maneira bem mais ampla por Gandhi do que se vê no próprio texto sagrado Hindu.
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